Artigo: Ser discípulo sem discriminações

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Reflexões de Dom Orani João Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro

Publicamos a seguir uma reflexão de Dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro, sobre o Evangelho deste domingo (30):


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Todos sabem como Moisés dedicou toda a sua vida pelo povo de Israel. Vemos isto na Primeira Leitura de hoje: Nm 11, 25-29. Porém, já próximo do final de sua jornada ele se mostrava muito cansado e esgotado. Os problemas só iam aumentando diante da indisciplina dos israelitas que viviam se queixando e provocando revoltas. No mesmo Livro dos Números (11, 10-15) Moisés recorre a Deus dizendo que não aguenta suportar o fardo sozinho. Daí Deus ordena que ele escolha 70 homens para colaborar na missão.


Os 70 homens se colocaram juntos na tenda onde Deus falava com Moisés e lá receberam o espírito que os tornou profetas. No entanto dois anciãos – Eldad e Medad – não estavam entre os 70 e, também, receberam o mesmo espírito. Isto causou enorme confusão entre eles. Se questionavam: como pode alguém estranho ter recebido o mesmo espírito? Isto seria um mal? Claro que não! Deveria até ser motivo de alegria. Mas houve quem retrucou com Moisés.

O mesmo pode-se dizer que acontece hoje em nossas comunidades. Muitas vezes os líderes comunitários se veem cansados e desiludidos com a caminhada da comunidade. Infelizmente existem ainda padres, catequistas e líderes leigos que pretendem fazer tudo sozinhos, impedindo novas forças para um novo vigor na comunidade.


Quando alguém se torna fanático, prende a ação de Deus só para si ou para seu grupo. Isto causa enormes danos na comunidade, pois impede que novas forças construam novos horizontes. Deve-se lembrar de que o espírito de Deus sopra onde quer; é como o vento. Ali está a liberdade de Deus.


Na Segunda Leitura (Tg 5, 1-6) vemos Tiago se dirigindo aos nobres, os ricos. Ele não distingue os ricos bons dos ricos maus. Fala apenas em “ricos”. Já na primeira parte da perícope de hoje vemos um tom de ameaça: “Ricos, chorai e gemei por causa das desgraças que sobre vós virão”. (vv. 1-3). Tudo o que acumularam será destruído. A ferrugem irá corroer os metais preciosos, os produtos dos campos apodrecerão ou serão queimados e as traças irão devorar as suas roupas. Porém Tiago não está contra a fartura dos bens. Apenas está indignado com o egoísmo daqueles que acumulam sem dividir nada com os mais necessitados ou pior: explorando os mais fracos.


A segunda parte da Leitura (vv. 4-6) mostra a fonte da riqueza acumulada. Ela vem da opressão sobre os mais pobres, a injustiça para com os necessitados. Tiago lembra que roubar o salário de um trabalhador é a mesma coisa que matá-lo. Vemos que a severidade de Tiago é compreensível se levarmos em conta que o acúmulo de riquezas levantado nas costas dos mais fracos é incompatível com a cultura cristã.


Já o Evangelho (Mc 9, 38-48) convida a um olhar mais apurado para as relações interpessoais: distinguir os amigos dos inimigos. Muitas vezes aquele que consideramos ser o melhor dos amigos pode um dia mostrar sua outra face quando cai na traição. Assim como aquele que muitas vezes é perseguido e caluniado revela-se um aliado na luta por uma mesma causa. Como então distinguir quem está conosco e quem está contra nós? Muitas vezes podemos nos sentir sós e desanimados, mas de repente vemos que existem outras pessoas que também estão aliadas às mesmas causas, porém, o véu da inveja encobre nosso olhar mais atento para com estas pessoas. Afinal quem está do nosso lado?


Uma vez João se dirigiu a Jesus dizendo que os discípulos haviam proibido certo homem de fazer curas pois usavam o nome Dele em suas práticas. Ele curava as pessoas, mas “não nos seguia”. Os discípulos não aceitavam que outra pessoa que não “os seguia” fizesse o bem. Infelizmente isto ainda acontece nos dias de hoje com os discípulos missionários que buscam esconder o bem que outra pessoa faz ao outro sem mesmo professar a fé em Jesus.

Os discípulos devem se alegrar quando alguém luta por uma boa causa, mesmo que não conheça uma página do Evangelho. Nesta pessoa também está o dom de Deus para fazer o bem. Nós, discípulos de hoje, devemos abandonar as marcas da arrogância e exclusividade. Devemos aprender com a tolerância, honestidade, lealdade e a hospitalidade. Com certeza muitas guerras religiosas deixariam de existir. Aos “fanáticos” Jesus tem uma palavra: “Quem quer que trabalhe em benefício do ser humano, é dos nossos”. Com isso, Jesus nos convida a abrir os olhos para ver o bem acontecendo onde talvez nossas forças não conseguem atingir bons resultados. É nesta diversidade de dons que se proclamam as maravilhas do Reino.

A segunda parte do Evangelho (vv. 41-48) mostra um agrupamento de vários ensinamentos de Jesus independentes entre si. Marcos deve ter recolhido estes ensinamentos dos vários momentos em que Jesus se dirigia às multidões.


A hospitalidade vem em primeiro lugar (v. 41). Veja que quem oferece um copo d´água é alguém que não pertence ao grupo dos discípulos. Jesus afirma que este gesto receberá sua recompensa. Em seguida temos uma observação rígida quanto aos escândalos (v. 42). Escandalizar os pequenos significava não permitir que aquelas pessoas que estavam dando seus primeiros passos ao encontro com o Mestre sejam afastadas pelo caminho, motivo de seu curriculum vitae.


Os versículos 43-48 chamam atenção para os escândalos que vêm do íntimo do ser humano, provocados pelos pés, mãos e pelos olhos. Para os judeus da época estes órgãos levavam o ser humano a inclinar-se para escolhas e atitudes imorais. Jesus ensina que as atitudes erradas devem ser cortadas pela raiz já que não condizem com a linha cristã. Tudo que estraga a própria vida e a dos outros deve ser corrigido.


Torna-se necessário “amputar” todas atitudes que levam ao pecado e nos afastam do diálogo com Deus e com os irmãos. Quem não dominar suas próprias paixões, e não cultivar uma disciplina cristã corre o risco de ser lançado na “Geena” onde o verme não morre e o fogo não se apaga.


Geena era um lugar imundo ao sul de Jerusalém onde haviam túmulos e era queimado o lixo da cidade. Quem de nós não conhece a imundície dos lixões nas grandes cidades hoje? Pois bem, este era o lugar simbólico para os que se entregavam à imundície do pecado.

Estas figuras de linguagem eram frequentemente utilizadas pelos rabinos na educação dos israelitas. Utilizadas por Jesus ganham nova roupagem para que cada um de nós se conscientize do valor da vida, zele pelo tempo que está vivendo, já que o passado ninguém pode restituir. E lembrar-se sempre que este pode ser um excelente tempo de qualidade para romper, “amputar” com os erros do passado, afinal Deus sempre nos dá uma nova chance. Ele se alegra com o pecador arrependido, pois sabe que na sua conversão está o testemunho silencioso de quem compreendeu os valores do Reino.


          + Orani João Tempesta, O. Cist.

          Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ