Quaresma: tempo da misericórdia divina, tempo para assumir o batismo

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(01) Como a Igreja entende hoje a “Quaresma”?

Quaresma é o tempo de seis semanas que se ordena “à preparação da celebração da Páscoa”, a maior festa cristã – preparação esta de caráter pessoal e comunitário. Começa com a Quarta-feira de Cinzas e vai até a Missa da Ceia do Senhor, na Quinta-feira Santa.

O Catecismo da Igreja Católica nos recorda ainda que “a Igreja se une a cada ano, mediante os quarenta dias da Grande Quaresma, ao mistério de Jesus no deserto”. É, portanto, um dos “momentos fortes da prática penitencial da Igreja”, destinados especialmente “aos exercícios espirituais, às liturgias penitenciais, às peregrinações em sinal de penitência, às privações voluntárias como o jejum e a esmola, à partilha fraterna (obras de caridade e missionárias)”.

É bom lembrar: nos séculos V e VI, o batismo de adultos ainda era a norma na Igreja em Roma. Nas semanas imediatamente anteriores à Páscoa, submetiam-se os catecúmenos a uma preparação intensa (frequentes encontros para orações, instrução, bênçãos, exorcismos). Recentemente a Igreja restaurou o catecumenato de adultos através do Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (cf. nn. 133; 159).

(02) O que ainda faz parte do tempo quaresmal?

O Concílio Vaticano II, em seu documento Sacrosánctum Concílium(4/12/1963), recorda que a Quaresma tem uma “dupla índole”: pretende não apenas levar os fiéis à “penitência”, mas também à “lembrança ou preparação do Batismo” (n. 109). Deve ser, portanto, um tempo forte de preparação para a recepção do Batismo (os catecúmenos/catequizandos) e também para a renovação de suas promessas na Vigília Pascal.

(03) É verdade que na Quaresma não se canta “aleluia”?

“Cantar a quaresma é, antes de tudo, cantar a dor que se sente pelo pecado do mundo”, observa a CNBB (Guia Litúrgico…, 3.3). Por isso nas liturgias quaresmais os cantos são “de penitência e conversão”, sem “glória” ou “aleluia” – reservados para o Sábado Santo (Vigília Pascal) e para três momentos particulares ao longo da Quaresma (22/02: Festa da Cátedra de S. Pedro; 19/03: Solenidade de S. José; 25/03: Solenidade da Anunciação do Senhor), e eventualmente a festa do padroeiro principal da comunidade (se cair neste período). Sabemos, pela fé, que o Senhor Jesus está vivo, mas é oportuno passar anualmente por um período de maior recolhimento, purificação e meditação. A cor roxa utilizada ao longo destes 40 dias – bem como a ausência de flores e o uso discreto dos instrumentos musicais – é mais um convite a recordar o sofrimento de Cristo Jesus pela nossa salvação e a necessidade de uma contínua conversão (“metanóia”).

(04) O que há de especial no 4º domingo?

É tradicionalmente chamado de “Laetáre”, “Alegrar-se”. Isto porque a Páscoa se aproxima, e aqueles que se empenham realmente na sua preparação não vêem a hora de poder celebrar festivamente a vitória de Cristo! Neste 4º domingo pode-se usar a cor rósea (Instrução Geral do Missal Romano, n. 308f) – o que ocorre só neste dia e no 3º domingo do Advento.

(05) De que maneira podemos viver concreta e frutuosamente a Quaresma?

A liturgia da Quarta-feira de cinzas nos fornece a resposta: a oração, o jejum e a esmola (cf. Mt 6,1-6.16-18) – de um modo discreto, não orgulhoso. São meios muito eficazes – unidos aos santos sacramentos, ensinamentos (Palavra de Deus) e mandamentos – para nos libertar das tendências desregradas do poder, prazer e possuir, abrindo-nos assim para um mais pleno amor a Deus, a si mesmo e ao próximo, cerne da moral cristã. Tornam-se “remédios” que devemos “tomar” ao rasgarmos o coração (Joel 2,13) marcado pelos pecados, vícios e defeitos. Com isso nos revigoramos também para resistir às provocações do mundo e às tentações do maligno, crescendo assim na esperança e na fé.

A esse respeito já dizia o Papa S. Leão Magno (+461): “Aproximando-se, portanto, caríssimos, o início da quaresma, isto é, a oportunidade de um serviço mais diligente do Senhor, uma vez que travamos o combate das santas obras, disponhamos o ânimo para o embate das tentações” (I Sermão sobre a Quaresma [39], 3, in S. Leão Magno, Papa, Sermões sobre as coletas, a quaresma e o jejum de Pentecostes, Vozes, Petrópolis, 1977, p. 27).

A Penitenciária Apostólica editou a 18/05/1986 o novo Manual das Indulgências, em que a Igreja, usando do poder das chaves, determina que diversas práticas de oração, caridade e sacrifício estão enriquecidas com especiais indulgências (Concessões, I-III). Nas Outras Concessões se menciona explicitamente a Via-sacra de 14 estações (n. 63).

A Igreja recomenda aos fiéis que anualmente se confessem e comunguem ao menos uma vez: “Todo fiel, depois de ter chegado à idade da discrição [10 anos], é obrigado a confessar fielmente seus pecados graves, pelo menos uma vez por ano”; “Todo fiel, depois que recebeu a santíssima Eucaristia pela primeira vez, tem a obrigação de receber a sagrada comunhão ao menos uma vez por ano. Esse preceito deve ser cumprido no tempo pascal, a não ser que, por justa causa, se cumpra em outro tempo dentro do ano”. A Igreja, como Mãe e Mestra, procura indicar para os seus filhos o mínimo que devem vivenciar para crescerem sadios, na graça divina. Assim, nada mais salutar do que fazermos uma boa confissão no tempo quaresmal, se nada nos impede. O Ritual de Penitência (2/12/1973) diz claramente que “o tempo da Quaresma é o mais apropriado para a celebração do sacramento da penitência”; “convém, pois, que se instituam várias celebrações penitenciais durante a Quaresma” (Introdução, n. 13), por exemplo, segundo o Rito “B” (Reconciliação de vários penitentes com confissão e absolvição individuais).

A Regra de S. Bento (+547) exortava aos monges a, durante a Quaresma, “apagarem (dilúere), nesses santos dias, todas as negligências dos outros tempos” (cap. 49) – isso vale para todos nós!

(06) Em muitos lugares, durante a Quaresma, os fiéis procuram unir a participação na liturgia oficial a práticas devocionais…

O Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (17/11/2001) elenca algumas destas práticas (nn. 127-137): a veneração a Cristo crucificado, a leitura da Paixão do Senhor, a Via Crucis (Via Sacra), a Via Matris (Sete dores de Maria). Vale lembrar que a Via Sacra não admite apenas uma única forma, mas existem outras, como a utilizada pelo Papa João Paulo II em 1991, 1992 e 1994, baseada nos textos dos evangelhos (n. 134). Pode-se ainda organizar Vigílias eucarísticas, Celebrações penitenciais, Encontros de oração e reflexão nos lares (textos da CNBB). Antigamente, em muitos lugares se cobriam as imagens, para nos lembrar que o foco é Jesus Cristo sofredor-vitorioso. O importante é que tudo conduza mais e mais à Eucaristia.
  

(07) Quaresma é um tempo triste, sombrio?

É claro que não! A liturgia da Quarta-feira de Cinzas convoca todos para o encontro com o amor de Deus, que é mais forte do que o pecado, do que o mal: “voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia” (Joel 2,13); “deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20).

É, portanto, um tempo de acolher mais uma vez a graça divina que nos transforma, nos eleva. É “tempo favorável”, como diz S. Paulo (2Cor 6,2). Em algum momento certamente haveremos de padecer (“Paixão”) ao passar (“Páscoa”) do “homem velho” ao “homem novo”, do “fermento velho” ao “fermento novo” – mas será uma “tristeza segundo Deus”, que gera “arrependimento” e “salvação” (2Cor 7,9-10).

(07) Condenamos o nosso corpo (elemento constitutivo da natureza humana) porque queremos ser mais livres para amar a Deus, ao próximo e a nós mesmos. No início o jejum quaresmal consistia em fazer apenas uma refeição diária, à tardinha. Depois se acrescentou a abstinência de carne e vinho, e em algumas regiões também de laticínios e ovos. A partir da Idade Média (Alta Escolástica) se dá uma mitigação progressiva de tais práticas em virtude de uma justa revalorização do corpo. Além da abstinência de carne, é preciso também purificar o olhar, ouvir, tocar, sentir, querer, pensar, falar, agir!

(08) Então, quem nos ilumina de um modo especial durante estes 40 dias…

…é a Palavra de Deus, proclamada e acolhida diariamente pela Igreja. Faça dela o seu alimento quaresmal também, como Jesus no deserto (cf. Lc4,4.8.12)! Com o seu ciclo trienal de leituras dominicais (anos A, B, C), encontramos elementos comuns e específicos a cada ano. Sempre o 1º domingo da Quaresma nos traz o relato das tentações de Jesus. No 2º domingo, a cena é a sua transfiguração. Depois os acentos são diversos: Ano A – tema do Batismo; B – Aliança; C – Penitência e reconciliação.

E as leituras semanais? Os liturgistas identificam três temas principais: a) a conversão e o culto interior; b) o perdão divino relacionado ao nosso perdão; c) a renovação pessoal e o dom da vida, frutos da Páscoa.

(09) Qual a origem histórica da Quaresma?

“A Páscoa, que desde o começo teve uma tão luminosa irradiação para frente, fazendo dos cinquenta dias até Pentecostes uma única festa pascal, fez sentir o seu influxo também sobre o tempo que a precedia”. Assim sendo, na 1ª metade do século IV se tem os primeiros sinais de um período pré-pascal destinado a uma preparação espiritual ao grande Mistério da Páscoa. Autores como S. Atanásio, S. Cirilo de Jerusalém e Eusébio de Cesaréia (Oriente); S. Jerônimo, S. Agostinho, S. Ambrósio e Etéria (Ocidente), escreveram a este respeito.

“Da mesma maneira que a quaresma, tempo que precede a festa da Páscoa, é símbolo dos trabalhos e sofrimentos desta vida mortal, assim os dias de alegria que seguem àquela festa são símbolo da vida futura, na qual reinaremos com o Senhor” (S. Agostinho, Sermo243,8).

Adrien Nocent, respeitável liturgista, destaca quatro fases para o surgimento da Quaresma (in Anámnesis, Marietti, Genova, 1988, pp. 151-157): a) no século II havia a prática de 40 horas de jejum antes da Páscoa, estendendo-se a 3 dias; b) no século III se registra em Alexandria a prática de 1 semana de jejum; c) mais adiante, por volta da metade do século IV, surge um jejum de 4 semanas em Roma (3 + a semana pascal/a partir de Ramos); d) tornou-se inevitável a referência aos 40 dias de jejum de Cristo no deserto: “Sejam impostos aos pecadores públicos quarenta dias de jejum durante os quais Cristo jejuou…” (Pedro de Alexandria, ca. 306 d.C., Ep. Canon., cân. 1). Assim veio-se a criar 40 dias de preparação (seis semanas), começando na quarta-feira (naquela época já era um dia de jejum). Na 5ª feira-santa se dava a reconciliação dos penitentes, depois de 40 dias.

Para alguns estudiosos a 1ª referência explícita de uma preparação pascal de 40 dias para todos é de Eusébio de Cesaréia, pelo ano 332 d.C.: “Antes da festa, como preparação, submetemo-nos ao exercício da quaresma, imitando o zelo dos santos Moisés e Elias” (De SollemnitátePascháli2.4.5, in Bernal OP, Jose Manuel, Iniciacion al año litúrgico, Ed. Cristiandad, Madrid, 1984, p. 171). Atanásio de Alexandria seria o autor de outra referência por volta de 334 d.C. (Carta festal6,13).

Especificamente iniciando na Quarta-feira, encontramos uma referência em S. Máximo de Turim (465 d.C.). Nesta mesma época, o Sacramentário Gelasianofala que os fiéis entram em retiro espiritual neste dia, chamado de cáputquadragésimae (n. 29). O costume de receber cinzas se dá a partir do século X (com o Papa Urbano II [+1099] é estendido para todos). Curiosamente, na antiga liturgia ambrosiana (Milão) não se celebrava a S. Missa em nenhuma das sextas-feiras da Quaresma, no que insistiu S. Carlos Borromeu na era moderna (Sínodo XI).

(10) E a palavra “Quaresma”?

Ela se encontrava no início de uma frase e passou a denominar um período do ano litúrgico: “Quadragésima die Christus pro nóbistradétur”, que se traduz assim: “Daqui a 40 dias (no quadragésimo dia) Cristo será entregue por nós”, para a nossa salvação. Quaresma é abreviação de quadragésima. “Quadragésima” está no feminino porque, em latim, “dia” é masculino e feminino. A língua portuguesa manteve a palavra no feminino.

Quaresma é tempo de renovação. Em língua inglesa isto é patente: Lent (Quaresma) provém do inglês arcaico Lencten = a época da primavera (no hemisfério norte), o tempo do ano em que os dias se prolongam e toda a natureza revive. Por isso se diz na Igreja ortodoxa: Raiou a primavera do jejum, começou a abrir a flor do arrependimento.

(11) O número 40…

…designa convencionalmente os anos de uma geração: 40 anos de estadia no deserto (Nm 14,34); de tranquilidade após a libertação dos juízes (Jz3,11.30 etc.); de reinado de Davi (2Sm 5,4). Daí a idéia de um período bastante longo (4 x 10), cuja duração exata pode não ser conhecida: 40 dias e 40 noites para o dilúvio (Gn 7,4); a permanência de Moisés no Sinai (Êx 24,18). Contudo, os 40 dias de viagem de Elias (1Rs 19,8) e do jejum de Cristo (Mc 1,13p) repetem simbolicamente os 40 anos de Israel no deserto.

(12) O que a Igreja no Brasil ainda nos propõe para o tempo da Quaresma?

Desde 1964 os católicos do Brasil – e todas as pessoas de boa vontade – são convocados a refletir sobre um tema específico ao longo de toda a Quaresma, a fim de promover uma conversão também social. É a chamada Campanha da Fraternidade, que tem contemplado temáticas tanto da vida interna da Igreja como da sociedade em que se encontra inserida. “Fraternidade e a Vida no planeta” é o tema.

Pe. Josieldo da Silva do Nascimento, vigário paroquial

Paróquia Nossa Senhora da Glória, Fortaleza-CE