* Por Dom Genival Saraiva, Bispo de Palmares – PE
O período da Quaresma, que a Igreja vivencia como preparação para a Páscoa, é um tempo favorável para que as pessoas se vejam, em seu estado de indiferença ou identificação, diante de Deus e de seus semelhantes. Por sua natureza, a Quaresma propicia aos cristãos a oportunidade de se colocarem em atitude de vigilância, oração e conversão; a caminhada quaresmal deve vislumbrar uma mudança de conduta nas relações entre as pessoas, bem como uma mudança de atitude em sua comunhão com Deus.
O profeta Ezequiel, cuja palavra a Igreja proclama nas celebrações penitenciais da Quaresma, utiliza a expressão “coração de pedra” e “coração de carne”, ao se referir à indiferença ou à sensibilidade que as pessoas manifestam, em seu modo de agir, diante do próximo, o que, por si, já revela a sua proximidade ou a sua distância de Deus. “Eu vos darei um coração novo e porei em vós um espírito novo. Removerei de vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei em vós o meu espírito e farei com que andeis segundo minhas leis e cuideis de observar meus preceitos, habitareis na terra que dei a vossos pais. Sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus.” (Ez 36,26-28) O coração de pedra e o coração de carne têm linguagens diferentes, obviamente; são muitas e grandes as diferenças entre alguém que tem coração de pedra e outrem que tem coração de carne. Deus é o primeiro a identificar essas diferenças, porém as pessoas as percebem, no mundo das relações humanas.
As marcas do coração de pedra são visíveis na vida das pessoas porque, normalmente, ferem a justiça que é vista no plano religioso, como virtude, e na esfera social como valor fundamental que norteia as relações pessoais e institucionais. O indivíduo que tem um coração de pedra é sempre um injusto. São inúmeras as situações de injustiça nas relações interpessoais, em razão da perversidade praticada, como a autoridade prepotente que age com arbitrariedade; o “assassino de aluguel” e o mandante do crime, para os quais a vida não tem o mínimo valor; o agiota explorador que suga o sangue de quem está economicamente desestruturado; o corrupto esperto que causa um incalculável prejuízo social; o pedófilo, com rosto de amigo, que vitima inocentes; o filho insensível que deixa os pais em situação de abandono. Há muitas outras expressões desse coração de pedra no mundo das pessoas. Em qualquer situação ou circunstância, quem tem coração de pedra desvia-se dos caminhos retos de Deus e envereda pelas estradas tortuosas da maldade.
Outra é a linguagem do coração de carne. Falar de coração de carne é falar de humanização, solidariedade, fraternidade, voluntariado, comunidade, verdade, respeito, dignidade, ética, espiritualidade e muitos outros valores que dão sentido à vida e à convivência. O coração de carne sempre coloca o ser humano, positivamente, numa perspectiva de abertura, ao se relacionar com seus semelhantes. Nada ao seu redor lhe é indiferente, notadamente, quando encontra dificuldades e necessidades na vida de pessoas que entram em sua história, permanente ou episodicamente.
O profeta Joel, por sua vez, fala da mudança do coração, como elemento de conversão ao Senhor e ao próximo: “Rasgai vossos corações, não as roupas! Voltai para o Senhor vosso Deus, pois ele é bom e cheio de misericórdia.” (Jl 2,13) O rito exterior de rasgar as roupas, como se fazia, diz pouco quando não acompanhado da mudança no coração. Rasgar o coração implica em mudança de sentimento, palavra e atitude, perante Deus e a comunidade. A Quaresma é um tempo oportuno para que os cristãos mudem seu coração de pedra em coração de carne.