Por Dom Murilo S.R. Krieger, Arcebispo de Salvador (BA)
“Afinal, quantos livros tem a Bíblia? Vejo que a minha tem 73 livros, mas a de um meu amigo tem somente 66… Por que essa diferença?…”
A pergunta, feita por um jovem, serve para nos lembrar de que não há na própria Bíblia um capítulo com um título do tipo: “Lista dos livros divinamente inspirados da Bíblia”. Comparando uma Bíblia católica com uma não-católica, verificamos que na católica há sete livros que não encontramos nas outras. São eles: Tobias, Judite, 1º Livro dos Macabeus, 2º Livro dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico (também chamado Sirácida) e Baruc. Na Bíblia católica há também alguns capítulos não encontrados nas outras: Daniel 3,24-90; 13 e 14, e Ester 10,4 a 16,24. A seguir, a razão disso.
Até o primeiro século da era cristã, os judeus da Palestina ainda não haviam estabelecido a lista dos livros inspirados. Enquanto isso, em Alexandria, no Egito, uma próspera colônia judaica, ali estabelecida desde o século 4º aC, falava-se a língua grega. Por isso, sentiu-se a necessidade de traduzir os livros sagrados do hebraico (língua falada na Palestina) para o grego (língua então falada no Egito). Tal tradução, feita entre os anos 300 a 150 aC, passou a ser conhecida com o nome de “Versão dos Setenta”, porque atribuída a 72 tradutores – ou “Alexandrina”, por ter sido feita em Alexandria.
Quando, entre os anos 80 e 100 da era cristã, os judeus da Palestina reunidos em Jâmnia, cidade desse país, decidiram definir o catálogo sagrado (naturalmente, do Antigo Testamento), adotaram alguns critérios – isto é, para ser considerado inspirado, o livro deveria: 1º) ser antigo – quer dizer, não posterior a Esdras (século V aC); 2º) ter sido redigido em hebraico, não em aramaico ou grego; 3º) ter sua origem na Palestina, não em terras estrangeiras; 4º) estar em conformidade com a Lei de Moisés.
Assim, deixaram de ser reconhecidos por aqueles judeus sete livros que pertenciam à “Versão dos Setenta”, e que são os acima elencados. Os critérios estabelecidos por eles para oficializarem o catálogo sagrado tiveram como base uma mentalidade nacionalista, pois predominava naquele grupo uma aversão aos estrangeiros em geral. Assim, foram eliminados: o Eclesiástico, o 1º e 2º dos Macabeus e o Livro da Sabedoria, por serem posteriores a Esdras (além disso, o Livro da Sabedoria e o 2º dos Macabeus foram escritos em grego e em terras estrangeiras); Tobias e Judite, por terem sido redigidos em aramaico, provavelmente depois de Esdras; Baruc e fragmentos de Daniel, por se encontrarem apenas em recensões não hebraicas.
Desde o final do primeiro século depois de Cristo, portanto, havia dois catálogos bíblicos entre os judeus. Os cristãos católicos adotaram a edição grega dos Setenta (ou Alexandrina), com aqueles sete livros. E qual a razão? É que os apóstolos, escrevendo os evangelhos e suas cartas, referem-se ao Antigo Testamento não segundo o texto hebraico, adotado pelos judeus da Palestina, mas recorrendo à versão dos Setenta. Das 350 citações do Antigo Testamento que ocorrem no Novo Testamento, 300 são tiradas dessa tradução. Se a edição bíblica dos Setenta (Alexandrina), que incluía os sete livros a que me referi, fosse infiel ou deturpada, os apóstolos não a teriam usado. Por isso, a Igreja Católica está convicta de que foi o Espírito Santo que inspirou também esses sete livros. São Jerônimo (+ 420), quando traduziu a Bíblia para o latim (língua usada no Mediterrâneo, com a dominação romana), utilizou-se da versão dos Setenta. Sua tradução passou a ser conhecida com o nome de “Vulgata” (isto é, comum, usual).
Em síntese: como a própria Bíblia não traz dentro de si uma enumeração dos livros inspirados por Deus, sua lista só pode ser conhecida pela tradição. E temos hoje duas tradições: a católica, que reconhece como inspirados os 73 livros da versão dos Setenta (Alexandrina), e a evangélica, que só reconhece como inspirados aqueles da lista dos judeus que ficaram na Palestina. Quanto ao Novo Testamento, não há divergências entre as duas tradições.