Francisco: uma fé sem dúvidas não funciona

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“Vícios e virtudes” (Editora Rizzoli) é o título do novo livro-entrevista do pe. Marco Pozza com o Papa Francisco que será lançado no dia 2 de março. O capelão da prisão de Pádua conversou com o Papa para um programa de televisão que será proposto em breve no canal Nove e se desdobra em 7 episódios dedicados ao confronto entre vícios e virtudes. O conteúdo do livro foi antecipado, no sábado (27/02),  pelo jornal italiano Corriere della Sera. O fio de reflexão segue a representação das sete virtudes e vícios opostos que Giotto pintou na Capela Scrovegni: justiça/injustiça, fortaleza/inconstância, temperança/ira, prudência/tolice, fé/infidelidade, esperança/desespero, caridade/ciúme. Francisco afirma: “Existem pessoas virtuosas, existem pessoas viciosas, mas a maioria é uma mistura de virtudes e vícios. Alguns são bons numa virtude, mas têm algumas fraquezas. Porque somos todos vulneráveis. E essa vulnerabilidade existencial devemos levar a sério. É importante saber disso, como guia do nosso caminho, da nossa vida”.

Ira e intimidação

“A ira destrói”, explica o Papa no livro. “A ira é uma tempestade cujo propósito é destruir. Pensemos no bullying entre os jovens. O bullying hoje é terrível. Está muito presente nas escolas. Mesmo os mais pequenos têm a capacidade de destruir o outro. (…) O bullying surge quando, em vez de buscar a própria identidade, se desvaloriza e se ataca a identidade dos outros. E quando ocorrem episódios de agressão e bullying nos grupos de jovens, na escola, nos bairros, vemos a pobreza de identidade de quem agride. A única maneira de se ‘curar’ do bullying é partilhar, viver juntos, dialogar, ouvir o outro, ter tempo porque é o tempo que faz o relacionamento. Cada um de nós tem algo de bom para dar ao outro, cada um de nós precisa receber algo de bom do outro”.

O dilúvio bíblico e o que corremos o risco

Francisco fala então da ira de Deus, que “é contra a injustiça, contra Satanás. É dirigido contra o mal, não aquele que vem da fraqueza humana, mas o mal de inspiração satânica: a corrupção gerada por Satanás, atrás da qual vão homens e mulheres, sociedades inteiras. A ira de Deus pretende trazer justiça, ‘limpar’. O dilúvio é o resultado da ira de Deus, diz a Bíblia. É uma figura da ira de Deus, que segundo a Bíblia viu muitas coisas más e decide cancelar a humanidade”. O Papa explica que o bíblico, segundo exegetas e biblistas, “é um conto mítico. Mas o mito é uma forma de conhecimento”. Para os arqueólogos, “o dilúvio é um relato histórico porque eles encontraram vestígios de inundação em suas escavações. Um grande dilúvio, talvez devido ao aumento da temperatura e ao derretimento das geleiras: o que acontecerá agora se continuarmos no mesmo caminho. Deus desencadeou sua ira, mas viu um justo, o pegou e o salvou. A história de Noé mostra que a ira de Deus também é salvadora”.

Prudência

Francisco então fala de prudência. “Para alguns, a prudência seria uma virtude pura, sem contaminação. É como se fosse um ambiente esterilizado. No entanto, a prudência é a virtude do governo. Não se pode governar sem prudência, pelo contrário. Quem governa sem prudência, governa mal e faz coisas ruins, toma decisões ruins, que destroem o povo, sempre. A prudência no governo nem sempre é equilíbrio. Às vezes, a prudência deve ser desequilibrada para tomar decisões que produzem mudanças. Mas a prudência é uma virtude essencial para quem governa: os homens passionais, e é preciso algo que nos diga ‘Pare, pare e pense’. Não é tão fácil ter prudência. É preciso muita reflexão, muita oração, mas acima de tudo, é preciso empatia. O asséptico, aquele que nunca se suja, aquele que se lava com desinfetante, não é muito prudente. A prudência anda de mãos dadas com a simpatia, com a empatia, para as situações, as pessoas, o mundo e os problemas (…) ”

Fé e dúvidas

Entre os trechos do livro antecipado pelo Corriere della Sera, também é significativo aquele dedicado às dúvidas que podem acompanhar a vida do fiel. “Pode a fé crescer de mãos dadas com a dúvida?” se pergunta o Papa Francisco. “Isso acontece porque somos humanos, e a fé é um dom tão grande que, quando a recebemos, não podemos acreditar. Será algo possível? O diabo coloca dúvidas, depois a vida, as tragédias: por que Deus permite isso? Mas uma fé sem dúvidas não funciona. Pense em Santa Teresinha do Menino Jesus: você acha que ela não tinha dúvidas? Leia o fim de sua vida. Ela conta que, nos piores momentos de sua doença, pediu para levar água benta ao seu leito, para pegar a vela abençoada a fim de afastar o inimigo. O problema é quando você não tem paciência. Jesus homem, no Horto das Oliveiras, estava feliz? ‘Por que você me abandonou?’. Pensar em ser abandonado por Deus é uma experiência de fé que muitos santos tiveram e também muitas pessoas hoje, que se sentem abandonadas por Deus, mas não perdem a fé. Eles guardam o dom: neste momento não sinto nada, mas guardo o dom da fé. O cristão que nunca passou por esses estados de espírito perde alguma coisa, porque isso significa que ele se contenta. As crises de fé não são faltas contra a fé. Pelo contrário, revelam a necessidade e o desejo de entrar cada vez mais profundamente no mistério de Deus. Uma fé sem essas provações me faz duvidar de que seja uma fé verdadeira”.

Fonte: Vatican News